O Iluminismo.
"Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos ignorantes, aos loucos, aos perversos e aos tiranos...será que nos chamamos de filósofos para nada?" - (Carta de Diderot a Voltaire, em 29 de setembro de 1762.)
A família iluminista
Acreditavam-se todos eles pertencer a uma só família, cujos membros espalhavam-se por Edimburgo, Nápoles, Filadélfia, Berlim, Milão ou Königsberg e, é claro, Paris. Eram os philosophes iluministas, escritores e livres-pensantes que organizavam-se ao redor de alguns dos mestres-pensadores da época, tais como Adam Smith, David Hume, Edward Gibbon, Diderot, o barão d'Holbach, Helvetius, o excêntrico filósofo Emanuel Kant e, evidentemente, em torno do "mestre" Jean-Jacques Rousseau e do seu rival , o "rei" Voltaire. Consideravam seus mentores espirituais os grandes pensadores do século anterior, tais como René Descartes, Isaac Newton e John Locke. Como em qualquer família, ocorriam desavenças entre eles. mas qualquer insinuação de prisão ou censura que pairasse sobre um dos seus integrantes, era o sinal para que os demais se mobilizassem na defesa do perseguido. Tornou-se célebre a afirmação de Voltaire que disse a um contendor seu: "Senhor, sou contra tudo o que vossa senhoria disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dize-la".
A secularização da sociedade
Empenhava-se, essa estranha família de escritores das mais diversas nacionalidades, na propagação de um vasta e ambicioso programa comum: a secularização total da sociedade! Secularismo, humanismo, cosmopolitismo e liberdade em todo os sentidos, eram as bandeiras deles. O direito à liberdade de palavra, de expressão, de imprensa, também se estendia para eles à liberdade de comércio, à liberdade do empreendimento econômico, fora das intromissões da censura da Igreja e do Estado absolutista-mercantilista. Livres enfim, para que cada um, de acordos com os talentos nascidos ou adquiridos, encontrasse o seu próprio caminho de realização. Desprovidos em sua maioria de cátedras acadêmicas, tendo o púlpito e os padres como inimigos, quais foram os instrumentos que aquela confraria de homens de letras se serviu para difundir seus ideais e princípios? Porque, de certa forma, os Iluministas tiveram que buscar e ao mesmo tempo formar o seu próprio público.
Para chegar até ele, para atingir o novo público cultivado (tanto de gente da nobreza como das classes burguesas) que gradativamente estava se formando na sociedade européia do século XVIII, recorreram intensamente à publicação e difusão de livros. Quando, devido à censura ou a uma queima judicial, recorriam à impressões clandestinas (feitas na Holanda ), depois as introduziam por contrabando em qualquer canto da Europa. Revelaram-se verdadeiros mestres em escrever panfletos, publicações que fizeram largo uso devido ao lado prático que eles tinham como veículo instantâneo de difusão de idéias. Daí boa parte da literatura deles, fosse em verso ou em prosa, estar carregada pelo estilo polêmico e apaixonado.
A Enciclopédia
O mais poderoso e duradouro de todos os instrumentos para a divulgação das Luzes - obra magna da propaganda iluminista - foi a edição da Enciclopédia, ou Dictionaire raisonné des sciences, des arts, et des métiers, dirigida por Jean Le Rond d'Alembert (entre 1751-54) e, em seguida, por Denis Diderot. Grandiosa publicação que se seguiu por vinte anos, até que, em 1772, o seu 17º volume encerrou a obra inteira. Fazendo com que, segundo Daniel Mornet, o século XVIII fosse "com toda a certeza....um século enciclopédico". Acertada sua impressão por meio de subscrições, a Enciclopédia ultrapassou largamente os seus 8.011 assinantes originais, virando leitura obrigatória entre os homens cultos do século. Foi uma obra consultada por uma quantidade inumerável de leitores por toda Europa e América incluída.
Tratou-se de uma estupenda síntese do conhecimento científico, com grande ênfase nas artes mecânicas e na sabedoria prática das coisas da vida, servindo de modelo para todas as demais que a seguiram posteriormente. A predominância e gosto por temas seculares e o alto nível dos seus colaboradores - Diderot selecionou o supra sumo da elite intelectual (disse-lhes "É preciso examinar tudo, remexer tudo sem exceção e sem reserva") - fez da Enciclopédia o acontecimento editorial e intelectual do século. Entre os grandes nome arrebanhados por ele estavam Montesquieu (Leis), Lamarck (botânica), Helvetius (matemática), Rousseau (música), Buffon, Necker, Turgot, Mongez, além de artigos do barão d'Holbach, um ateu militante, e Voltaire(encarregado dos verbetes sobre Elegância, História, Espirito e Imaginação), num total de 139 colaboradores identificados. Talvez ela tivesse para o mundo burguês e industrial que então despontava, o mesmo significado que a Suma Teológica de São Tomás de Aquino teve para a Europa medieval.
A intensa correspondência
O homem culto do século XVIII é acima de tudo um grande escritor de cartas. Havia uma verdadeira arte da epistolografia, atribuindo-se somente a Voltaire mais de 50 mil cartas! Como sabiam que mais tarde haveria interesse em publicá-las, cuidavam do estilo e da apresentação delas, como se fossem páginas ou capítulos de livros futuros.
Por gostarem de trocar informações e colocar os outros integrantes da irmandade - la petit troupe - a par do que estavam fazendo ou pensando, elas, as cartas, converteram-se num veículo confiável, rápido, e, fundamentalmente, ao abrigo da censura. Tanto é que os americanos fizeram largo uso delas quando espalharam pelas Treze Colônias os Comitês de Correspondência, formados por ativistas da independência e simpatizantes da causa iluminista, entre eles, destacando-se acima de todos, Benjamim Franklin. Logo, pode-se afirmar que as cartas distribuídas pelos Comitês de Correspondência foram as sementes da Revolução Americana de 1776
Aliás, foi por meio de uma das suas cartas, escrita a Hélvetius em 1763, que Voltaire canta a vitória do partido das luzes sobre os partidários da superstição e do obscurantismo. Dizia ela: "Essa razão que tanto perseguimos avança todos os dias [..] Os jovens se formam, e aqueles que são destinados aos lugares mais elevados desfazem-se dos infames preconceitos que aviltam uma nação. Sempre haverá um grande número de tolos, e uma boa multidão de patifes. Mas os pensadores, mesmo em número pequeno, serão respeitados [..] Esteja certo que tão logo as pessoas de bem se unam, nada mais poderá detê-las. É do interesse do rei, e do Estado, que os filósofos governem a sociedade... Chegou o tempo em que homens como você devem triunfar [...] Afinal, nosso partido já vence o deles em matéria de boa educação." - (Carta a Helvitus, em 15.9.1763)
A imprensa e o panfleto
Apoiaram-se também os iluministas na imprensa. Editou-se muito no século XVIII. A tal ponto que o filósofo Hegel disse que a leitura diária do jornal "era a oração do homem moderno". Somente na América do Norte daquele século, estima-se me mais de dois mil títulos de jornais tenham vindo à luz. Mas o panfleto foi o veículo soberano da comunicação no Século das Luzes. Infelizmente perdeu-se a maior parte deles, mas Voltaire esgrimia com eles utilizando-os em suas célebres campanhas (pela introdução do teatro em Genebra ou em defesa da família Calais e no affair Sirven). Eram de baixo custo, fáceis de serem transportados e escondidos, e geralmente eram escritos em linguagem sintética e objetiva, que depois veio a ser a escrita comum de quase toda a imprensa moderna. Era também uma publicação democrática, pois atingia tanto o salão do aristocrata, como a taverna operária e o café do literato.
Salões & clubes
Ainda entre a elite pensante - formada difusamente por nobres liberais, padres dissidentes e livres-pensadores da mais variada procedência - foi importantíssimo os encontros realizados nos salões. Geralmente organizados ao redor de uma grande dama ,eles foram o centro da vida social e intelectual da sociedade no Ancien Régime. Os mais afamados salões foram os da M.me Deshoulières, da M.me. Sablière, da condessa la Suze e o da lendária Ninon de Lanclos, verdadeiros oásis de tolerância, espirito irreverente, acolhendo em seu meio ateus, deístas e libertinos. O constante intercâmbio entre seus freqüentadores, as leituras proibidas que realizavam em público, a troca de livros e idéias, o espirito livre e solto, fez dos salões um celebrado agente do Iluminismo. O salão de M.me. d'Epinay foi um dos que se tornou cenário para o lançamento de originais literários (e inclusive musicais) que eram submetidos previamente aos "árbitros das artes", que atuavam como um espécie de "porta-vozes do público", perante quem os autores ou compositores tinham por primeiro que legitimar-se.
Os clubes masculinos e as associações profissionais igualmente tornaram-se pontos de apoio importantes para propiciar o debate sobre as tendências do momento, formando, junto com a imprensa, o que se chamou de "esfera pública literária."
As lojas maçônicas
Acima de tudo, em importância para a história da difusão das idéias, pairaram as lojas maçônicas (a importância delas era tamanha que, já no século XVII, o filósofo Leibniz considerava a sociedade civil como um simples prolongamento delas) tornaram-se focos de ativismo político, de troca de panfletos e de elaboração de estratégias de combate na luta contra a superstição e o obscurantismo. Mirabeau, quando militava como um "irmão", redigiu um programa para a sua loja cuja finalidade "era a introdução da razão, da sensatez, da sã filosofia na educação de todas as ordens de homens."(Memoire, 1776). Schiller escreveu um belo poema (Freude) para ser cantado numa loja maçônica freqüentada por um amigo seu, e Mozart compôs a Zauberflöte,1791, a Flauta Mágica para atender uma encomenda de uma loja austríaca.
Tal como numa mascarada, a luz da razão era obrigada a esconder-se para proteger-se, desvelando-se aos poucos. Por primeiro apenas aos confiáveis, daí a importância dos salões, dos clubes e das lojas.
O tabernáculo de Frederico e
o despotismo ilustrado
Algumas cortes européias serviram por igual de abrigo aos iluministas. Especialmente conhecido foi o Tabernáculo que Frederico o Grande, da Prússia, montou na sua propriedade, em Saint-Soucy, convidando para lá uma elite de livres-pensadores. Lá estiveram o naturalista Maupertuis, La Mettrie, o perseguido autor do "Homem máquina" e o mais famosos de todos, Voltaire. Catarina II da Rússia tentou o mesmo com Diderot e José II da Áustria celebrizou-se em proteger os pensadores do furor da Igreja Católica. Os reis apoiaram os livres-pensadores na medida em que podiam servir-se deles para reformar os estados antes que uma possível revolução explodisse. E também faziam questão de protegê-los para fins publicitários, para terem uma boa imagem junto às classes culturas e refinadas da Europa de então. Por isso se entende que em matéria de política a maioria dos iluministas seguiu a Doutrina do Dr. Johnson, favorável ao despotismo ilustrado. Porém, historicamente, a agitação e a insubordinação aos costumes e a crítica à religião que abertamente a maioria deles praticou, fez com que, ironicamente, os iluministas fossem tidos como os arautos da democracia moderna.
Os cafés
Mais democráticos do que os salões (que reuniam a nobreza e a elite pensante), os clubes (que congregavam os profissionais) e as lojas (dos maçons), foram também importantíssimos os cafés. Espalhados pelas cidades e pelas principais capitais da Europa e mesmo da Nova Inglaterra, esses estabelecimentos eram o salões das classes médias, dos jornalistas e dos escritores iniciantes, abrigando a efervescência e a inquietação provocada pelas novas idéias. Em Paris, um dos mais famosos foi o La Coupolle, o favorito de Voltaire, e em Milão, atraiam as presença de nobres como Cesare Beccaria e dos irmãos Pietro e Alessandro Verri, que inclusive lançaram um periódico com o título de "Il Caffè", para defender a tese da abolição da tortura. No jogo dos símbolos importa observar que a Era da Taberna, associada ao álcool e à embriaguez, que dominou inteiramente o século anterior, o XVII, deu lugar no século XVIII à Era dos Cafés, estimuladora do espirito e da palavra ágil, contestadora.
O café encerrava o que podemos chamar de o circuito da opinião pública do Século das Luzes composto, como viu-se, pelo salão, pelo clube e pela loja maçônica. O conservadorismo das universidades e o reacionarismo das igrejas, graças à intensa censura e à repressão constante, procuraram impedir que as novas idéias atingissem os estudantes e os paroquianos, mas com isso permitiram, sem assim o desejar, que um outro publico se formasse a revelia dos acadêmicos e dos sacerdotes.
A opinião pública
Numa conhecida tese (Mudança estrutural da esfera pública) defendida em 1961, o filósofo Jürgen Habermas mostrou que o conceito de "opinião pública", tal como hoje se conhece, nasceu no século XVIII. Comprova-se isso, segundo ele, pelo fato de que a palavra publicité (öffentlich em alemão) começou a ser empregada, contraposta à autoridade, a partir daquela época (resultante da dilatação da sociedade civil que, com a proliferação dos salões, dos clubes, dos cafés, das livrarias e das lojas maçônicas, criou um espaço de emancipação para os burgueses), abria seu caminho devido à expansão comercial e industrial, e à crescente amplitude da mercantilização das coisas. O surgimento dela, da "opinião pública", deveu-se substancialmente ao crescimento da vida urbana, ao aumento do número dos leitores, e ao impacto causado pela revolução da sociedade civil inglesa do século XVII. Locke, o grande filósofo patriarca do Iluminismo, quando galgou para a direção do College Christ em Oxford, colocou a Law of Opinion, a Lei da Opinião, como que equivalente à lei divina. Dessa forma, além da opinião da corte e da opinião do clero, predominantes e absolutas nos tempos feudais, forjou-se a opinião pública como representante ainda que difusa dos interesses gerais do Terceiro Estado e, por vezes, da sociedade como um todo. Inegavelmente a "opinião pública" mostrou-se cada vez mais permeável às idéias Iluministas, por todas as razões expostas acima. Quanto ao povo em geral, grande parte ainda analfabeto, era atingido, e por vezes mobilizado, pela propaganda das luzes graças aos affriches (panfletos) que eram distribuídos ou lidos em voz alta nos lugares públicos.
Bibliografia
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Mornet, Daniel - Los origines intelectuales de la Revolución francesa, 1715-1787, Paidos, Buenos Aires, 1969.
Mousnier, R. e Labrousse, E. - O Século XVIII in Historia Geral das Civilizações, Difel, São Paulo, 1968, 3ª ed. 2 vols.
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Yolte, John W. (editor) - The blackwell companion to the Enlightenment, Blacwell, Londres, 1996
Gravuras: John Yolton - The blackwell "Enlightenment", Londres, 1996
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